sexta-feira, 15 de maio de 2015

Ilusão



O ruído alto do motor impede Serena de cair no sono, e a cada pescada com que tomba sobre o passageiro ao lado desperta assustada e vexada de sua condição. É esta sua rotina diária, manhã e tarde, se pudesse teria sua carteira assinada como passageira, é claro que almejaria algo melhor, como ser sócia da companhia de transporte, mas isso não é pra ela.
Diariamente, com figurino impecável, de quem não deveria se arriscar no transporte público, Serena se desloca para o trabalho; e a rotina não muda nem mudará por um bom tempo. Até parece estranho: vestir-se elegantemente para distribuir sorrisos em loja de artigos de alto padrão, mas ao fim do mês, fazer jus apenas ao honorário destinado à sua classe.
O itinerário diário lhe presta o serviço de divã, entre uma piscada e outra. É ali, naquele lugar comum e popular que Serena vê-se diante de um espelho que preferia ignorar, “Ora por que não me tiro daqui se tenho beleza bastante para sorrir na Maison”, é o que pensa. Dói-lhe olhar para os lados e ver-se em meio a operários, domésticas e pretos de toda forma. Serena sabe que os que lhe observam ali diariamente, e por Deus, não ousam lhe dirigir a palavra, têm certeza de que aquele mundo abafado, mal cheiroso e feio não lhe pertence. Ela também sabe, “Não, isso não é pra mim”, por isso não se furta a manter-se oclusa em seus óculos escuros e com uma forjada expressão de antipatia, “Não gastarei meus sorrisos com essa gente”.
Vez por outra um assunto lhe desperta a atenção, como o da moça grávida que acabara de comprar um tanquinho, “E foi à vista”, que muito a ajudará após o nascimento do bebê, embora essa mesma moça afirmasse “Roupa de pagão se lava na mão”. Como pode um tanquinho ter tanta importância na vida de alguém, que mulher é essa que se alegra com um eletrodoméstico e não com uma joia, “Vá lá, e ela saberia mesmo o que é uma jóia, vide as miçangas que parecem brotar daquela orelha. Eu jamais me permitiria alegrar com tão pouco, feliz fiquei mesmo com minha primeira pérola, linda e cara, Deus sabe como eu quis um par de pérolas, a joia mais linda, elegante e discreta, digna! Não me bastaria uma pérola, precisava ser daquela joalheria e daquele designer! Como sempre digo, eu mereço mais, muito embora a conversa da grávida, que por sinal parece ter se esquecido de comprar blusas maiores para lhe cobrir a barriga por inteiro, recorde-me as lamúrias de minha mãe sobre o emboço da casa, se é que posso dizer que vivo numa casa. Aquilo é um cubículo, mal posso me mexer, melhor seria morar na Maison; sentar-me naqueles móveis grandes e macios, de tecidos finos, cores vibrantes e cheiro sutil... Ah, o cheiro! Mal posso me lembrar do ar de mofo do cômodo em que passo as noites, isso mesmo: passo as noites! Não posso dormir, sequer sonhar, num lugar daqueles! Ah, o cheiro! É o pior indício de quem se é e de onde se está...”
Fonte da Imagem: http://anabailune.blogspot.com.br/2013/05/espelhos.html
E é com um odor de quem nunca se dá ao trabalho de lavar o uniforme que Serena de súbito desperta de seus pesadelos. Sempre de óculos escuros, olhos fechados e face virada para o que há fora da janela, a moça não notara que o passageiro ao lado mudara já algumas vezes, mas naquele momento, foi impossível não perceber. Veio lhe das narinas à boca aquele cheiro, que se torna gosto, de urina seca, suor, sol, mofo e o mau hálito característico da manhã.
Naquela hora o moça não despertara só de sua comodidade, mas para sua realidade, lembrara que embora se acreditasse diferente, sabia que cada pessoa que ali diariamente lhe acompanhava no embalar do destino, via-lhe apenas como uma pobre arrogante, que costuma se esquecer de quem é. E mais nada.


Angra dos Reis, 17 de julho de 2014
G.C.A


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