O ruído alto do
motor impede Serena de cair no sono, e a cada pescada com que tomba sobre o
passageiro ao lado desperta assustada e vexada de sua condição. É esta sua
rotina diária, manhã e tarde, se pudesse teria sua carteira assinada como passageira,
é claro que almejaria algo melhor, como ser sócia da companhia de transporte,
mas isso não é pra ela.
Diariamente, com
figurino impecável, de quem não deveria se arriscar no transporte público,
Serena se desloca para o trabalho; e a rotina não muda nem mudará por um bom
tempo. Até parece estranho: vestir-se elegantemente para distribuir sorrisos em
loja de artigos de alto padrão, mas ao fim do mês, fazer jus apenas ao
honorário destinado à sua classe.
Vez por outra um
assunto lhe desperta a atenção, como o da moça grávida que acabara de comprar
um tanquinho, “E foi à vista”, que muito a ajudará após o nascimento do bebê,
embora essa mesma moça afirmasse “Roupa de pagão se lava na mão”. Como pode um
tanquinho ter tanta importância na vida de alguém, que mulher é essa que se
alegra com um eletrodoméstico e não com uma joia, “Vá lá, e ela saberia mesmo o
que é uma jóia, vide as miçangas que parecem brotar daquela orelha. Eu jamais
me permitiria alegrar com tão pouco, feliz fiquei mesmo com minha primeira
pérola, linda e cara, Deus sabe como eu quis um par de pérolas, a joia mais
linda, elegante e discreta, digna! Não me bastaria uma pérola, precisava ser
daquela joalheria e daquele designer!
Como sempre digo, eu mereço mais, muito embora a conversa da grávida, que por
sinal parece ter se esquecido de comprar blusas maiores para lhe cobrir a
barriga por inteiro, recorde-me as lamúrias de minha mãe sobre o emboço da
casa, se é que posso dizer que vivo numa casa. Aquilo é um cubículo, mal posso
me mexer, melhor seria morar na Maison;
sentar-me naqueles móveis grandes e macios, de tecidos finos, cores vibrantes e
cheiro sutil... Ah, o cheiro! Mal posso me lembrar do ar de mofo do cômodo em
que passo as noites, isso mesmo: passo as noites! Não posso dormir, sequer
sonhar, num lugar daqueles! Ah, o cheiro! É o pior indício de quem se é e de
onde se está...”
Fonte da Imagem: http://anabailune.blogspot.com.br/2013/05/espelhos.html |
Naquela hora o
moça não despertara só de sua comodidade, mas para sua realidade, lembrara que
embora se acreditasse diferente, sabia que cada pessoa que ali diariamente lhe
acompanhava no embalar do destino, via-lhe apenas como uma pobre arrogante, que
costuma se esquecer de quem é. E mais nada.
Angra dos Reis, 17 de
julho de 2014
G.C.A
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